Autotutela legislativa: o Parlamento não pode terceirizar sua função ao Judiciário

28/08/2025

O mundo está em constante transformação e atravessa dilemas institucionais decorrentes de mudanças profundas. Nesse contexto, observa-se fenômeno semelhante no cenário político, marcado pelo enfraquecimento da democracia clássica, em que os poderes legitimamente eleitos pelo povo vêm gradualmente perdendo espaço para instâncias tecnocráticas na formulação e implementação das políticas públicas.

 

Concorrem para esse enfraquecimento determinadas mudanças legislativas que ampliam o poder e a interferência do Poder Judiciário na interpretação da constitucionalidade das normas produzidas pelo Poder Legislativo. Exemplo disso é o Projeto de Lei nº 306/2025, de iniciativa parlamentar, em tramitação no estado de Santa Catarina, que altera e atualiza o rito processual das ações diretas de inconstitucionalidade, de constitucionalidade e correlatas.

 

A proposta, já em seu artigo 2º, amplia o rol de legitimados a propor ações perante o tribunal, o que pode enfraquecer o debate legislativo e multiplicar as iniciativas voltadas contra a vontade popular expressa na norma produzida pelo Parlamento, convertendo, em certa medida, os magistrados em verdadeiros legisladores. Os legitimados a ajuizar ações de controle concentrado de constitucionalidade deveriam constituir um rolnumerus clausus, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.875.

 

O Parlamento, diante dessa proposta, deveria reafirmar o eixo democrático por meio de medidas que valorizem sua centralidade na proposição, alteração e interpretação das normas. Isso poderia se dar pela adoção de novas ferramentas jurídicas de diálogo institucional, de modo a assegurar que o Legislativo detenha a prerrogativa de discutir, antes ou mesmo após decisão judicial, a conveniência de promover ou não a autocorreção de determinada norma contestada. A contestação e o debate sobre a validade das normas deveriam ocorrer, prioritariamente, no próprio Parlamento, que dispõe de diversas comissões temáticas abertas à participação de cidadãos, entidades e demais Poderes, permitindo manifestação plural e democrática. Em especial, a Comissão de Constituição e Justiça que constitui espaço adequado para a análise e o debate sobre a interpretação constitucional das normas.

 

Talvez devesse se legitimar o princípio da autotutela legislativa, que consistiria na prerrogativa institucional conferida ao Poder Legislativo de revisar, corrigir ou aprimorar atos normativos e procedimentos internos, mediante mecanismos formais previstos no ordenamento jurídico.

 

Tal prerrogativa manifesta-se, de um lado, na possibilidade de revogação ou alteração de atos normativos anteriormente aprovados, de modo a adequá-los às novas exigências sociais, políticas ou jurídicas; e, de outro, no poder de emendar, aperfeiçoar ou retificar projetos de lei, propostas legislativas e demais deliberações parlamentares, com o objetivo de sanar vícios de constitucionalidade, legalidade e juridicidade, corrigir defeitos de técnica legislativa ou promover maior coerência normativa. Assim como no âmbito administrativo, em que a autotutela assegura a conformidade dos atos com a legalidade e a legitimidade, no campo legislativo a autotutela representa expressão da autonomia do Parlamento para exercer o autocontrole normativo, assegurando a atualização, a racionalidade e a efetividade de sua produção normativa, sempre observados os limites constitucionais, legais e regimentais.

 

A necessidade de aprimoramento, modernização e retorno ao eixo democrático do projeto de lei torna premente a introdução de dispositivo que preveja, já no primeiro despacho do relator das ações constitucionais, a possibilidade de intimação do presidente da Comissão de Constituição e Justiça, a fim de que este manifeste eventual interesse em instaurar diálogo institucional com o tribunal. Essa manifestação formal abriria espaço para o exercício da autotutela legislativa, permitindo ao Parlamento propor projeto de lei de revogação da norma impugnada, de sua alteração ou mesmo de elaboração de nova disciplina normativa, sempre de forma democrática e debatida por representantes eleitos.

 

Na concepção da democracia clássica, cabe ao Parlamento a função primordial de emanar as normas jurídicas, reservando-se ao Judiciário a interpretação em casos concretos ou em situações excepcionais nas quais estejam em jogo direitos fundamentais e a proteção de minorias vulneráveis. Nesse sentido, uma nova disciplina deveria simultaneamente mitigar o excesso de protagonismo judicial e recuperar as prerrogativas próprias do Legislativo, sendo que um dos instrumentos a ser estudado e implementado é justamente o diálogo institucional, mediante o qual o Parlamento possa exercer sua capacidade de autocorreção normativa.

Fonte: Conjur