Decisão da Suprema Corte está fazendo um estrago no poder regulatório do governo dos EUA
Na decisão de 28 de junho da Suprema Corte dos Estados Unidos que revogou o precedente Chevron Deference — o que criou a Doutrina Chevron, segundo a qual os juízes federais deveriam acatar a interpretação dos órgãos governamentais de leis que são ambíguas ou omissas, desde que a interpretação fosse razoável — e passou essa responsabilidade para os tribunais, a ministra Elena Kagan previu, em seu voto dissidente, que haveria “uma ruptura em grande escala” no poder regulatório do governo.
Pouco mais de três meses depois, a previsão da magistrada se confirmou: empresas e outras organizações moveram 110 ações em que alegam que órgãos federais excederam a autoridade que lhes foi conferida pelo Congresso. E, de acordo com a decisão em Loper Bright Enterprises v. Raimondo (referida como Loper Bright), seus regulamentos devem ser revogados.
De um modo geral, juízes federais de primeiro e segundo graus têm concordado com esse argumento — e vêm ajudando essas organizações a se livrar de regras federais de que não gostam —, tudo em nome da extinção da Doutrina Chevron, em uma decisão que trocou a expertise de técnicos e cientistas dos órgãos públicos pela expertise jurídica dos juízes.
Entre as ações que tramitam nas cortes, há pedidos de revogação de regulamentos que tratam da poluição do ar e da água; da emissão de gases de efeito estufa; da mudança do clima; da discriminação em tratamento da saúde; da segurança alimentar e de medicamentos; do controle da compra de armas; do aborto; do pagamento de horas extras; de taxas “escondidas” das companhias aéreas; e da honestidade do mercado financeiro.
Algumas publicações, como a Courthouse News Service, a Earthbeat (National Catholic Reporter) e a ProPublica, reuniram alguns desses casos que já tramitam pela Justiça Federal dos EUA — e são precursoras das muitas que virão para desmantelar o que essas organizações chamam de “estado administrativo”.
Poluição das caldeiras industriais
A Environmental Protection Agency (EPA), agência responsável pela proteção ambiental nos EUA, divulgou, em 3 de setembro, um regulamento que impõe padrões de poluição mais rigorosos para novas caldeiras industriais (deixou as antigas em paz).
Um grupo de empresas do setor, lideradas pela U.S. Sugar Corporation (a maior produtora de cana-de-açúcar dos EUA), contestou a autoridade da EPA para regulamentar a Lei do Ar Limpo (Clean Air Act), em vista da extinção da Doutrina Chevron. E argumentou que os juízes são mais capacitados para interpretar a legislação ambiental.
O grupo inclui empresas que queimam carvão, papel e rejeitos agrícolas para gerar energia e emitem poluentes tais como mercúrio, monóxido de carbono, cloreto de hidrogênio e outras partículas.
O Tribunal Federal de Recursos para o Distrito de Colúmbia (em Washington, D.C.) decidiu que a EPA classificou inapropriadamente as caldeiras industriais como fontes de poluição perigosa, de acordo com seus novos padrões de poluição mais rigorosos. E citou a decisão da Suprema Corte em Loper Bright que aboliu o precedente Chevron Deference para sustentar sua própria decisão.
Pagamento de horas extras
Apenas algumas horas após a Suprema Corte divulgar o fim da Doutrina Chevron, um juiz federal no Texas expediu uma liminar que suspendeu uma nova regulamentação do Departamento do Trabalho dos EUA que expandiu o direito ao pagamento de horas extras.
O regulamento tinha a finalidade de conter uma “malandragem” de alguns empregadores, que classificavam empregados comuns como “executivos” — uma classe que não recebe pagamentos por horas extras trabalhadas —, e estabelecia que empregados com salários inferiores a US$ 43.888 por ano, em 2024, e a US$ 58.656 por ano, em 2025, e que exercem o mesmo trabalho de outros assalariados, não podem ser classificados como “executivos”.
O juiz decidiu que o Departamento do Trabalho excedeu a autoridade que lhe foi concedida pelo Congresso na lei Fair Labor Standards Act. E, em observância à decisão da Suprema Corte em Loper Bright, bloqueou a nova regra. E prometeu uma decisão final em questão de meses.
Discriminação contra transgêneros
Em julho, três juízes federais, em estados diferentes, sustentaram-se na decisão de Loper Bright para bloquear a implementação de uma nova regra do Departamento de Saúde e Serviços Humanos que proibia a discriminação baseada em identidade de gênero em tratamento de saúde.
O juiz federal Louis Guirola Jr. emitiu uma liminar válida para todo o país contra a nova regra, segunda a qual a identidade de gênero é protegida pela Affordable Care Act — lei mais conhecida como Obamacare (que garante seguro-saúde a quem não pode pagar uma empresa privada).
O juiz argumentou que a lei proíbe discriminação “com base em sexo”, mas não usa a frase “identidade de gênero”. Além disso, escreveu o juiz, o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao expedir a nova regra, o que vai contra a decisão da Suprema Corte em Loper Bright.
Taxas ocultas de companhias aéreas
Para atrair compradores, várias companhias aéreas adotaram a prática de anunciar passagens por um preço baixo, para bater a concorrência. Mas, no processo de compra, começam a aparecer taxas que devem ser acrescidas ao preço, tais como taxa para marcar assento, taxa para despachar malas etc. E, nas linhas finas, taxas de cancelamento ou de mudança de datas dos voos.
Em abril, o Departamento de Transporte emitiu uma regra que proíbe essas “surpresas desagradáveis, que rendem a elas meio bilhão de dólares anualmente”. E determinou que todas as taxas devem ser explícitas na primeira vez que a companhia aérea oferece o preço da passagem ao consumidor.
Em maio, um grupo de companhias aéreas moveu uma ação judicial na qual alegam que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor a elas essa regra. Em sua petição, elas afirmam que o órgão pode ordenar que parem com práticas injustas ou enganosas depois que elas ocorrem, mas não pode dizer a elas que práticas devem adotar.
Em 1º de julho, advogados que representam as companhias aéreas argumentaram no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região que, de acordo com a decisão da Suprema Corte em Loper Bright, apenas os tribunais, não um órgão do governo, têm autoridade para interpretar a lei.
No final do mês, o tribunal decidiu que os advogados comprovaram que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor essa nova regra. E a bloqueou.
Acordo trabalhista de não concorrência
Depois de cinco anos de estudos, a Federal Trade Commission (FTC) emitiu uma regra que proíbe as empresas de obrigar seus empregados a assinar acordos de não concorrência — os que estabelecem, em contratos de emprego, que o empregado que deixar a empresa fica impedido de trabalhar para uma concorrente por um certo período de tempo.
A FTC argumentou que a regra é necessária porque tais cláusulas contratuais prejudicam “a liberdade fundamental dos trabalhadores de mudar de emprego”, além de serem “exploradoras” e de “impedir a inovação”.
Em agosto, um grupo de organizações, liderado pela Câmara de Comércio dos EUA, moveu uma ação em um tribunal federal no Texas alegando que a FTC excedeu sua autoridade. O juiz federal repetiu tal argumento ao escrever que “a FTC promulgou uma regra de não competição em excesso de sua autoridade legal”, conforme decidido em Loper Bright.
Exigência de antecedentes na compra de armas
Em abril, o órgão governamental encarregado de controlar o comércio de álcool, tabaco e armas de fogo (ATF — Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) emitiu uma regra destinada a preencher uma brecha na lei. A nova norma estabelece que os compradores de armas vendidas pela internet ou em feiras de armas também devem apresentar atestados de bons antecedentes, como qualquer pessoa que as compra em lojas.
“Todos os comerciantes de armas, que vendem o produto para obter lucro, devem exigir atestado de bons antecedentes, para se assegurar que o comprador não é proibido por lei de adquirir uma arma”, diz a regra.
Uma ação contra a norma foi movida por 21 estados republicanos em um tribunal federal em Arkansas. Outro grupo de interessados foi mais esperto: moveu uma ação no Tribunal Federal do Distrito Norte do Texas, onde atua o juiz de preferência dos republicanos, na prática de judge shopping, Matthew Kacsmaryk.
O juiz emitiu rapidamente uma liminar (antes mesmo de a decisão de Loper Bright ser anunciada) bloqueando a execução da regra. Ele argumentou que havia uma alta probabilidade de os peticionários serem bem-sucedidos no julgamento do mérito porque a ATF excedeu sua autoridade.
O Departamento de Justiça (DOJ) entrou com recurso contra a liminar no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região — o mais conservador-republicano do país. Sem chances de ganhar a causa nesse tribunal, provavelmente terá de recorrer à Suprema Corte.
Ajuda federal a estados que proíbem o aborto
O governo federal disponibiliza fundos aos estados para financiar programas de planejamento familiar. Tal planejamento inclui a oferta de “aconselhamento neutro e não diretivo sobre aborto a pacientes que o solicitarem.”
Mas diversos estados republicanos baniram o aborto depois que a Suprema Corte revogou Roe v. Wade, o precedente que legalizou o procedimento em todo o país. Por isso, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) determinou, por meio de uma nova regra, que esses estados não terão mais direito ao financiamento.
O Tennessee, um dos estados afetados, baniu o aborto, com exceção apenas para “prevenir a morte da mulher grávida ou o risco sério de comprometimento substancial e irreversível de uma função corporal importante”. Por isso, o estado determinou que só ofereceria aconselhamento sobre o aborto para casos que estivessem em acordo com a lei estadual.
O HHS cancelou a ajuda ao Tennessee. O estado, então, moveu uma ação em um tribunal federal alegando que o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao exigir aconselhamento imparcial sobre aborto como condição para receber a ajuda federal.
No ano passado, o Tribunal Federal de Recursos da 6ª Região havia decidido, em um caso semelhante, que o HHS tem a autoridade legal para recusar a ajuda, conforme determinava à época a Doutrina Chevron. Agora, com a Loper Bright em jogo, o caso volta ao tribunal.
Propaganda enganosa continua valendo
Uma investigação da FTC concluiu que a empresa Intuit fez propaganda enganosa ao anunciar o TurboTax, software para contribuintes fazerem declarações de Imposto de Renda gratuitamente (graças ao patrocínio de um programa governamental), mas convenceu consumidores de que seria melhor para eles pagar por serviços de ajuda especializada na preparação do documento.
A FTC mandou a Intuit “cessar e desistir” de fazer quaisquer alegações enganosas de “grátis” em sua publicidade. A Intuit moveu uma ação contra a ordem da FTC. No Tribunal Federal da 5ª Região, sustentou seu pedido na decisão de Loper Bright: “Qualquer ‘deferência’ à interpretação da lei pela FTC não sobrevive à decisão interveniente da Suprema Corte”, escreveram os advogados da empresa.
Regulamentação da cannabis
O Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região julgou, ainda em setembro, o caso Anderson v Diamondback Investment Group, que examinou se um empregado pode ser legalmente despedido por usar certos produtos derivados da cannabis — incluindo THC-O, uma substância psicoativa sintetizada a partir do extrato da planta.
A Diamondback argumentou, em sua petição, que o THC-O é inequivocamente legal, de acordo com a lei agrícola. E, sustentando-se na decisão que eliminou a Chevron Deference, esnobou a regulamentação da Drug Enforcement Administration (DEA): “Mesmo que a lei fosse ambígua, não precisamos nos submeter à interpretação da DEA”.
A Justiça pode julgar decisões da imigração?
O caso Bouarfa v. Mayorkas já chegou à Suprema Corte e deve ser julgado no ano judicial 2024/2025. Um cidadão palestino se casou com a cidadã americana Amina Bouarfa e, em algum tempo, conseguiu cidadania no país.
No entanto, dois anos mais tarde o serviço de imigração (United States Citizenship and Immigration Services) revogou a concessão de cidadania ao constatar que foi um casamento falso, só para conseguir documentos americanos.
A mulher moveu uma ação judicial que chegou à Suprema Corte com a pergunta: uma decisão dos Serviços de Cidadania e Imigração pode ser julgada pela Justiça?
Esse caso (como outros que podem surgir) é considerado um tiro pela culatra para os conservadores-republicanos do país, que ficaram felizes com a decisão de Loper Bright que extinguiu a Doutrina Chevron, mas são defensores fervorosos de regras duras contra imigrantes ilegais.
Se a Suprema Corte aplicar a própria decisão em Loper Bright, decidirá a favor do imigrante e contra o serviço de imigração. Afinal, os juízes, não os técnicos dos órgãos públicos, detêm agora a função de decidir se as regras que regulamentam tudo no país são válidas ou não.