Comunicação prévia de operações à Defensoria poderia reduzir abusos policiais

13/06/2022

Por ordem do Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Rio de Janeiro deve ser informado previamente de operações policiais nas comunidades cariocas. Porém, tal medida não tem sido suficiente para conter abusos. Para mudar esse cenário, o advogado Luís Guilherme Vieira defende que a Defensoria Pública também seja notificada das ações das forças de segurança e as acompanhe in loco. Especialistas ouvidos pela ConJur avaliam que a medida poderia ajudar a reduzir a letalidade policial.

Em junho de 2020, o ministro do STF Edson Fachin concedeu liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 para determinar que, enquanto a epidemia da Covid-19 não terminasse, as operações policiais nas comunidades do Rio só poderiam ser feitas em situações extraordinárias, que deveriam ser justificadas por escrito e comunicadas imediatamente ao Ministério Público estadual. A decisão foi referendada pelo Plenário do Supremo em agosto daquele ano.

Essa restrição das operações policiais no Rio de Janeiro a casos "absolutamente excepcionais" reduziu as mortes causadas por agentes de segurança em 34%, salvando pelo menos 288 vidas em 2020. Os dados são do estudo "Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: os impactos da ADPF 635 na defesa da vida", feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).

No entanto, a partir de outubro de 2020, a decisão passou a ser sistematicamente violada, com o aumento de operações e mortes. O MP-RJ informou a Fachin em dezembro que estava exigindo informações das polícias antes de operações em favelas e investigando as mortes decorrentes dessas ações.

Em abril de 2021, o MP-RJ criou um grupo temático temporário para promover em todo o estado ações estratégicas e coordenadas para atender às determinações para redução da letalidade e da violência policiais.

Porém, uma ação policial na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, deixou 28 mortos em maio — o maior número de vítimas em uma incursão das forças de segurança já registrado. A operação desrespeitou as decisões do Supremo sobre o tema. Pouco depois, a Polícia Civil do Rio decidiu manter em sigilo por cinco anos todas as informações sobre operações policiais desencadeadas no estado. Várias organizações da sociedade civil viram tentativa de ocultar dados.

Após a operação no Jacarezinho, o MP-RJ criou uma força-tarefa para investigar as mortes. O grupo foi dissolvido em maio de 2022, após denunciar quatro policiais civis pela morte de três pessoas, além de dois supostos traficantes pela morte do policial civil que foi vitimado na ação. Outras dez investigações sobre as demais 24 mortes foram arquivadas porque a promotoria não encontrou evidências capazes de indicar a prática de crime por parte dos policiais, conforme informação do jornal O Estado de S. Paulo. 

A decisão do STF foi descumprida em quase metade das ações das forças de segurança promovidas entre junho e novembro de 2020. Os dados são do estudo "Por um plano de redução da letalidade policial e sua supervisão pelo observatório judicial sobre a polícia cidadã", feito pelo Geni-UFF em parceria com o laboratório de dados Fogo Cruzado.

No julgamento de mérito da ADPF 635, em fevereiro de 2022, o Supremo ordenou que o estado do Rio apresentasse em 90 dias um plano destinado a conter a letalidade das operações de suas forças policiais e controlar violações de direitos humanos. O plano deve conter medidas objetivas, cronogramas específicos e a previsão dos recursos necessários para a sua implementação.

Mesmo assim, a polícia do Rio vem promovendo ações que desrespeitam direitos humanos, apontou o PSB, autor da ação. O último exemplo foi a operação policial na madrugada do dia 25 de maio, que deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, zona norte do Rio.

Esse caso demonstra o descompromisso do estado do Rio de Janeiro com o cumprimento da decisão do Supremo, diz o partido e os amici curiae. Em março, o governo fluminense, comandado por Cláudio Castro (PL), apresentou o Plano Estadual de Redução de Letalidade Policial. Contudo, o PSB e os amici curiae pediram que o STF rejeite o programa "por se tratar de mera carta de intenções absolutamente genéricas, sem nenhum compromisso real com a redução da letalidade policial no estado".

Fiscalização pela Defensoria
Em artigo publicado pela ConJur, o criminalista Luís Guilherme Vieira defendeu que a Defensoria Pública, tal como o MP, fosse informada previamente sobre as operações policiais. Dessa maneira, defensores poderiam acompanhar as incursões in loco, como representantes da Ordem dos Advogados do Brasil fazem em caso de buscas e apreensões contra escritórios.

"Chegado, ainda que tardiamente, o momento de o STF decidir que a Defensoria Pública, órgão de Estado competente pela assistência dos pobres, ser comunicada com a mesma antecedência do que o Ministério Público acerca das ações policiais que estão por acontecer, sem que quaisquer detalhes operacionais lhe sejam repassados, por serem as ações sigilosas e de cunho investigatório, mas objetivando possam os defensores públicos acompanhá-las em tempo real, tal qual sucede com advogados quando estão em vias de ter seus escritórios varejados por buscas e apreensões, a quais só podem se dar na presença de representante da OAB, sob pena de nulidade, mirando, portanto, que aqueles tenham condições de se preparar para, com o peso e credibilidade institucionais e social, evitar, ou ao menos (tentar) minimizar, genocídios como os de anteontem (24/5), o segundo maior no Rio de Janeiro", opinou Vieira.

A sugestão de Vieira foi bem recebida por especialistas no assunto. Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF, avalia que a Defensoria pode ajudar a conter os abusos policiais.

"Ainda que seja de atribuição exclusiva do MP o controle externo da atividade policial, a Defensoria tem um papel único e importante na contenção dos danos humanos causados por operações policiais. Isso porque, para além do atendimento jurídico realizado, a Defensoria é, via de regra, o primeiro e um dos poucos órgãos públicos que se deslocam e fazem o monitoramento das violações de direitos humanos in loco durante essas ações. Os termos da proposta de Luís Guilherme Vieira parecem sensatos e certamente são bem-vindos no contexto da brutalidade policial do Rio de Janeiro".

Candidato a deputado federal pelo PT do Rio, o ex-presidente da seccional fluminense da OAB Wadih Damous afirma que, se eleito, apresentará projeto de lei para estabelecer que a Defensoria seja previamente avisada das operações policiais e as acompanhe presencialmente.

"É uma excelente proposta. Coloca em pé de igualdade nesses processos de criminalização o MP e a Defensoria. Nós sabemos que, pelo menos no Rio, o MP, no fim das contas, acaba chancelando os abusos da polícia. Dificilmente se veem policiais indiciados e condenados por conta de violência e abuso de autoridade. A proposta significa tratar os pobres com um mínimo de cidadania. Da mesma forma como o MP, a Defensoria Pública também tem que ser avisada antes das operações. Todos sabemos o saldo dessas incursões policiais — a mortandade. Quem sabe a presença da Defensoria não possa inibir a sanha de extermínio da polícia do Rio".

Por sua vez, o ex-defensor público-geral do Rio André Luís Machado de Castro ressalta que o efetivo cumprimento das medidas impostas pelo STF é tão importante quanto a comunicação prévia sobre as incursões policiais. Ou seja, apenas promover operações em casos absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito; restringir ações policiais em perímetros escolares e hospitalares; preservar vestígios da cena do crime; e evitar remoções de corpos para a realização de perícia.

"Porém, as polícias não vêm cumprindo essas decisões, e os controles interno e externo da atividade policial ainda carecem de uma análise das operações como um todo, que examinem seus motivos, plano de ação, forma de execução e eventuais responsabilidades daqueles que as ordenaram", analisa Castro.

Por outro lado, o delegado da Polícia Civil do Rio Orlando Zaccone tem dúvidas sobre a efetividade da Defensoria no controle da atividade policial. Ele recorda que, quando foi eleito governador do Rio, em 2018, Wilson Witzel cogitou a possibilidade de contratar advogados para defender policiais acusados de abusos e mortes, mas a ideia desagradou à Defensoria.

"A Defensoria Pública ficou ofendida. Mas como a Defensoria atua como acusação? É um paradoxo. Sou crítico a essa função da Defensoria quanto a assistente de acusação. Não sei se o órgão contribuiria tanto para o controle da atividade policial".

Já o MP não é omisso na fiscalização da polícia, e, sim, "agente ativo na política de extermínio", destaca Zaccone. "Ao se manifestar a favor do arquivamento das investigações, o MP constrói um discurso que legitima a ação letal da polícia. Ele não é só um órgão que deixa de fiscalizar. Ele dá uma roupagem jurídica e diz que as ações estão dentro da lei. A quantidade de pessoas mortas no Brasil é uma política de Estado", diz o delegado.

Estreita colaboração
Questionada pela ConJur sobre a proposta, a Defensoria Pública do Rio afirmou que atua em cooperação com órgãos encarregados legalmente de exercer o controle e a fiscalização da atividade policial, como o Ministério Público, que cumpre essa função desde a determinação do STF na ADPF 635.

Também ressaltou que a Ouvidoria da Defensoria trabalha "em estreita colaboração com o MP e outros órgãos competentes e já conseguiu fazer cessar ou impedir graves violações em áreas mais vulneráveis a esse tipo de ação".

O Ministério Público fluminense informou que somente se manifesta em casos concretos, e não em tese. Portanto, disse que "não emitirá opinião institucional a respeito da sugestão feita pelo especialista no citado artigo".

 

Fonte: Conjur