Normas trazidas pela Lei 8.429/1992 não podem retroagir?

30/10/2020

Dizer que as normas sancionadoras trazidas pela Lei n. 8.429/1992 não poderiam retroagir para atingir fatos anteriores poderia soar um truísmo à luz do artigo 5º, XXXIX e XL, da Constituição; mas será mesmo que a questão é tão óbvia assim?

O Superior Tribunal de Justiça, em idos tempos, chegou a admitir como possível a tipificação a posteriori de fatos anteriores à vigência do diploma, como ilustram estes dois julgados:

(...) o art. 129, inc. III, da Lei Maior já autorizava a perseguição, pelo Ministério Público, dos agentes públicos que tivessem, com suas condutas, lesado o erário, daí porque, embora à época dos fatos não estivessem vigor a Lei n. 8.429/92, já havia a tutela do patrimônio público pelo ordenamento jurídico vigente — inclusive, por exemplo, pela Lei n. 4.717/65.7. Daí porque, embora os fatos fossem anteriores à Lei n. 8.429/92,já eram puníveis civilmente à luz de outros diplomas, e o ajuizamento da ação quando vigente a Lei de Improbidade Administrativa autoriza a aplicação das sanções previstas por esta.

 Afastar a aplicação da Lei n. 8.429/92 por vedação à irretroatividade implicaria  em reconhecer, por via transversa, a completa identidade entre os ilícitos por ela punidos e os ilícitos penais, na medida em que, para os ilícitos civis (natureza dos ilícitos de improbidade administrativa), não vige a referida vedação. (REsp 718.321, DJ de 19.11.2009)

Inexistência de ofensa ao princípio da irretroatividade da lei. A Lei 8.429/1992 não inventou a noção de improbidade administrativa, apenas lhe conferiu regime e procedimento jurídicos próprios, com previsão expressa de novas sanções, não fixadas anteriormente. 10. Antes da Lei 8.429/1992, a prática de improbidade administrativa, sob o prisma do Direito material, já impunha ao infrator a obrigação de ressarcimento aos cofres públicos. (REsp 1.069.779, DJ de 13.11.2009)

Posteriormente, contudo, o mesmo Tribunal passou a entender que, ao menos no aspecto punitivo da referida lei, não poderia ela retroagir:

Não é possível a aplicação das sanções previstas pela Lei 8.429/1992 a atos de improbidade administrativa que se consumam inteiramente, na conduta  e em seus efeitos, em período anterior à sua vigência, visto que, por se tratar de legislação mais gravosa, nesse caso não há possibilidade de efeito imediato da lei nem retroatividade dessa, ainda que inexista direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada em favor do agente infrator. (REsp 1.129.121, DJ de 15.3.2013)

Como se depreende do trecho acima, a posição mais atual do Superior Tribunal de Justiça não concebe a retroatividade da Lei n. 8.429/1992, assentando, todavia, a possibilidade de enquadramento de condutas em seus tipos nas hipóteses (i) de prática continuada ou permanente — a rigor, nessas hipóteses, em nossa percepção, nem sequer de retroatividade se cuidaria — e, ainda, (ii) quando os efeitos do ato perpetrado anteriormente à sua tipificação se protraíssem no tempo invadindo a vigência do diploma tipificador.

O objeto de nossa preocupação se situa exatamente naquela última parte, quando se fala na possibilidade de atração temporal da incidência da citada Lei não pela conduta, mas pelas consequências da prática delituosa. Já perquirindo sobre o ponto, releva lembrarmos a máxima tempus regitactum, que a nosso ver ganha especial color sob o prisma sancionador. Queremos com isso dizer que, notadamente quando o papel normativo de orientação de condutas encontra origem em comandos que, descumpridos, imputam punição ao indivíduo, sentido não faz, em nossa opinião, que se possa alcançar com censura comportamento anterior à lei censora.

Tampouco nos seduz a tese de que efeitos estendidos no tempo fariam vezes de uma espécie de prolongamento da consumação do ato ímprobo... Ora, uma coisa é o chamado delito permanente, consistente em conduta alongada que trespassa diferentes instantes e cujo exemplo clássico, na seara criminal, é o sequestro ou cárcere privado; coisa absolutamente diversa, vereda outra, é a conduta que, uma vez praticada, impinge consequências que dimanam indefinidamente (mantido o prisma criminal, seria o caso do homicídio, de efeitos perpétuos).

Daí que atos até então não considerados ímprobos, mas que resultassem em negócios jurídicos que, alongados no tempo, viesse a conviver mais tarde com a tipificação do comportamento que lhes deu origem até poderiam ser anulados ou acionar esferas de controle diversas, mas, seguramente, segundo pensamos, não autorizariam a cominação de sanções desencadeadas por sua configuração a posteriori como improbidade.

Insistimos: é vasto o portfólio normativo que advoga em defesa da coisa pública mesmo no que toca a fatos anteriores à Lei n. 8.429/1992, como testemunham o artigo 159 do Código Civil de 1969, o Decreto n. 20.910/1932, o Decreto-Lei n. 3.240/1941, a Lei n. 3.164/1957 (Pitombo-Godói), a Lei n. 3.502/1958 (Bilac Pinto), a Lei n. 4.717/1965, a Lei n. 7.347/1985 e o Decreto-Lei n. 2.300/1986.Todo esse manancial de disposições, como se vê, autoriza, mesmo no que concerne a atos mais antigos, aquela que, talvez, seja a mais imprescindível das tutelas reforçadas pela improbidade administrativa, que é a de reparação ao erário, o que implica dizer que a irretroatividade da Lei n. 8.429/1992 não desampararia dimensão essencial da tutela da probidade, como, a propósito, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

A observância da garantia constitucional da irretroatividade da l ei mais gravosa, esteio da segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema jurídico. (REsp 1.129.121, DJ de 15.3.2013)

O que não concebemos, isto sim, é que, ainda que dados comportamentos pudessem já encontrar repulsa por nosso ordenamento, pudessem eles ter o condão de acionar consequências jurídicas específicas não conhecidas (ou cognoscíveis) pelo agente ao tempo da prática do ato.

Em reforço de nosso argumento, a tese de retroatividade, no particular, ainda seria capaz de fornecer um verdadeiro paradoxo, denunciador de seu desacerto: incidisse a lei sobre fatos pretéritos, quando se iniciaria a contagem da prescrição? Da prática do ato (o que nos soa mais adequado, mas poderia até resultar em pretensões sancionadoras natimortas) ou somente da entrada em vigor do diploma, quando de fato nasceria, por aquela via, a pretensão sancionadora? A reflexão de fato escancara a deficiência do raciocínio...

Enfim, como a essa altura já ressai clara, nossa posição é no sentido de que o ato pretérito praticado ao tempo em que ainda não era tipificado como ímprobo não pode desafiar os efeitos da Lei n. 8.429/1992 caso suas consequências se projetem posteriormente sobre a vigência de tipificação, nova, daquela conduta.

Por outro lado, e já concluindo, entendemos que as disposições processuais (teoria do isolamento dos atos processuais) e materialmente benéficas oriundas da Lei n. 8.429/1992, aqui ilustradas, a primeira, pelo acordo de não persecução cível (artigo 17, § 1º) ou, a segunda, por hipotética redução de limite máximo de pena (como suspensão de direitos políticos ou de proibição de contratação com o poder público), poderiam, sim, retroagir, até por uma artigo analogia in bonam partem do artigo 5º, XL, da Constituição, valendo colher, especificamente no que toca à transação, a posição do Superior Tribunal de Justiça em caso semelhante.[1]

[1]"(...) Não há óbice a que a parte material da Lei n. 12.850/2013 seja aplicada somente ao processo de crimes cometidos após a sua entrada em vigor e a parte processual siga a regra da aplicabilidade imediata prevista no Código de Processo Penal." HC 282.253, DJ de 25.4.2014.

Fonte: Revista Consultor Jurídico - Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega