Ranking de inconstitucionalidade: 2019 foi o ano em que o STF mais julgou ADIs

10/08/2020

Nesta quarta-feira, 12 de agosto, a ConJur lança o Anuário da Justiça Brasil 2020. O evento será transmitido pela TV ConJur, a partir das 18h30, com a participação do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e de representantes de todos os tribunais superiores e da advocacia. Esta reportagem integra a publicação.

Desde 1988, quando foi proposta a primeira ação de controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, 2019 foi o ano em que mais processos do tipo foram julgados. Ao todo, 489 foram analisadas; em 271 casos, o mérito foi julgado. O balanço final mostra que de cada dez leis julgadas em 2019, sete foram consideradas inconstitucionais, no todo ou em parte.

Mostra, também, que a maior parte das decisões se deu no Plenário Virtual, dedicado a casos em que a jurisprudência já está firmada. Das 271 ações julgadas no mérito, 175 foram decididas no sistema on-line; 95, na sessão física; e uma por decisão monocrática.

O ano de 2020 já dá mostras de que deve ultrapassar essa marca, apesar dos problemas gerados pela epidemia da Covid-19. No primeiro semestre, 161 ADIs foram julgadas no mérito – a maior parte delas (147 ADIs) no Plenário Virtual.

Nesses meses, o Plenário decidiu pelo menos 25 pedidos de liminar – quase todos relacionados a medidas provisórias editadas pela Presidência da República para lidar com questões sociais, trabalhistas, econômicas criadas pelo novo coronavírus. Em 2019, foram apenas 16 pedidos de liminar analisados pelo Plenário.

Suspendeu, por exemplo, dois artigos da MP 927, que permitiu mudanças no contrato de trabalho durante a epidemia. O artigo 29 estabelece que o coronavírus não é doença ocupacional e o artigo 31 suspendeu a atuação de auditores do trabalho por 180 dias. Suspendeu também o artigo 1º da MP 928, que restringia a Lei de Acesso à Informação no período da quarentena. De acordo com a decisão, em respeito ao princípio da publicidade, o Estado deve fornecer as informações solicitadas, sob pena de responsabilização política, civil e criminal. Portanto, não há alteração que se faça necessária, principalmente diante de cenário de crise sanitária.

Em maio de 2020, foi a vez da corte suspender a MP 954, segundo a qual as empresas de telefonia deveriam liberar para o IBGE a relação de nomes, números de telefone e endereços dos consumidores, pessoas físicas ou jurídicas. O objetivo seria dar suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência pública. Para os ministros, a MP não define como e para que serão usados dados coletados. Além disso, não apresenta mecanismos técnicos para evitar vazamentos acidentais ou o uso indevido dos dados.

Por outro lado, a MP 936 foi mantida na íntegra até que o mérito da ADI 6.363 seja julgado. A norma previu a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, redução da carga horária e de salários em até 70%. Ao revogar a liminar concedida monocraticamente pelo ministro Ricardo Lewandowski, o Plenário entendeu que acordos individuais firmados entre empresas e trabalhadores não precisam passar pelo crivo de sindicatos.

Em 2019, o ranking de inconstitucionalidade foi liderado pela União: foram 22 ações julgadas procedentes. Em segundo lugar ficou o estado do Rio de Janeiro, com 15 ações que resultaram em leis retiradas do ordenamento jurídico. Santa Catarina ficou em terceiro, com 12 casos de inconstitucionalidade.

Também em 2019 a corte recebeu diversas ações de controle de constitucionalidade contra normas legislativas de iniciativa do presidente Jair Bolsonaro. Em seu primeiro ano de mandato, seus atos foram alvo de mais de 70 ações de controle de constitucionalidade no STF. No ano, foram distribuídas 349 novas ações de controle concentrado aos ministros.

As Medidas Provisórias 870 e 886, convertidas na Lei 13.844/2019, que determinavam a transferência da demarcação de terras indígenas da Funai, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, foram alvo de mais de dez ações e declaradas inconstitucionais. Na verdade, a MP 870 foi rejeitada pelo Congresso Nacional, fazendo com que o presidente da República editasse nova MP, a 886, nos mesmos termos, a qual foi convertida em lei.

A manobra foi duramente criticada pelos ministros do STF e a demarcação de terras foi mantida sob responsabilidade da Funai. Para o decano da corte, ministro Celso de Mello, “o comportamento do senhor Presidente da República, traduzido na reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso Nacional no curso da mesma sessão legislativa, revela clara, inaceitável e perigosa transgressão ao princípio da separação dos Poderes”.

No julgamento, foi firmada a seguinte tese: “Nos termos expressos da Constituição, é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada. Com a concessão da presente medida cautelar, subsiste o tratamento normativo anterior, com a vinculação da Funai ao Ministério da Justiça.”

A Medida Provisória 873/2019, que proibiu o desconto da contribuição sindical da folha de pagamento, foi questionada em 11 ADIs e uma arguição de descumprimento de preceito fundamental. Como a medida perdeu a vigência porque não foi apreciada pelo Congresso no prazo adequado, as ações foram extintas pelo ministro Luiz Fux, sem apreciação do mérito.

Já a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) foi questionada por juízes, membros do Ministério Público, auditores fiscais e delegados em sete ADIs. Juízes afirmam que a lei atinge a independência do Poder Judiciário, reduzindo sua atuação, em especial no combate à corrupção, porque, segundo os autores, criminaliza a atividade de julgar. Membros do MP dizem que a lei criminalizou comportamentos relacionados ao exercício da atividade-fim de órgãos públicos.

Um dos julgamentos que mais dividiram o Plenário foi o da execução da pena após condenação em segunda instância. Foram julgadas três ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43, 44 e 54) que tinham como objeto o artigo 283 do Código de Processo Penal. O dispositivo diz que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”.

Por maioria, a corte decidiu pela constitucionalidade do artigo. A maioria se pautou pelo princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Decisão em sentido contrário havia sido tomada em 2016, quando, também por maioria, o STF permitiu a prisão após condenação em segundo grau.

Celso de Mello afirmou que o sistema jurídico deve apresentar “proteção judicial efetiva” para assim garantir os direitos fundamentais e conter poderes de órgãos do estado que são responsáveis pela persecução penal. A Constituição, disse o ministro, não pode ser submetida “à vontade dos poderes nem ao império dos fatos”. “Sua supremacia é a garantia mais efetiva de que os direitos e a liberdade jamais serão ofendidos. E cabe ao STF a tarefa de velar para que essa realidade não seja desfigurada.” Relator das ações, o ministro Marco Aurélio foi seguido pelos ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

A minoria acompanhou a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, que entendeu que a norma deve ser interpretada de forma compatível com a exigência constitucional de efetividade e credibilidade do sistema de Justiça penal. Acompanharam a tese Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Os ministros ainda vão decidir se a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a execução imediata da pena imposta pelo Conselho de Sentença.

Outro dispositivo que provocou polêmica e uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.874) foi o Decreto 9.246/2017, com o qual o então presidente Michel Temer concedia o indulto de Natal a presos, uma prática já tradicional e prevista em lei. A Procuradoria-Geral da República e outros críticos do indulto argumentavam que o decreto foi feito para beneficiar condenados por crime de colarinho branco e prejudicava o combate à corrupção.

Por maioria, o Plenário da corte decidiu que é prerrogativa do presidente da República conceder indultos sem que sofra interferências do Judiciário. Durante os debates, o ministro Ricardo Lewandowski declarou que “este ato do presidente da República que lhe é prerrogativa, é insindicável por parte do Judiciário. É isto que esta corte está assentando. Não podemos entrar no mérito se é bom, se não é. É prerrogativa do presidente e temos de nos curvar à prerrogativa”.

Alexandre de Moraes disse que o instituto existe desde o início da República e que, antes dela, o imperador também concedia o benefício. “Estamos decidindo que é legítimo o perdão da pena, após cumprimento de um quinto, independentemente do tamanho da pena, se quatro ou 20 anos, pelos crimes de peculato, tráfico de influência, organização criminosa.”

O Plenário também declarou inconstitucional lei do estado do Rio de Janeiro que limitou a prisão preventiva a 180 dias. Ao julgar a ADI 5.959, os ministros entenderam que houve invasão da competência da União. Para a ministra Cármen Lúcia, não cabe ao legislador estadual dispor sobre prazo máximo de recolhimento em prisão preventiva. A relatora lembrou que a matéria é tratada nos artigos 311 a 316 do CPP, que não fazem menção a prazo de duração da prisão preventiva e ressalvam a possibilidade de revogação da custódia se não subsistir o motivo que levou à sua decretação.

A lei aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro foi vetada pelo então governador Luiz Fernando Pezão. A Alerj, no entanto, derrubou o veto e publicou a lei.

Entre as ações julgadas, a mais antiga havia sido autuada em 1989 (ADI 170). Por unanimidade, os ministros entenderam que é inconstitucional o dispositivo da Constituição do Rio Grande do Norte que dispunha que a escolha dos desembargadores do Tribunal de Justiça do estado precisaria de aprovação prévia do governador do estado. A Carta também previa que os integrantes do quinto constitucional precisariam de aprovação da Assembleia Legislativa.

De acordo com Gilmar Mendes, relator da ação, “para garantir a independência do Poder Judiciário, e do próprio juiz, em relação aos demais Poderes ou a influências externas, a Constituição de 1988 dotou os tribunais de poder de autogoverno”. O que significa escolher seus órgãos diretivos, elaborar seu regimento interno e escolher os seus integrantes.

Os anos de privatização do governo federal foram parcialmente afetados quando o STF decidiu que a alienação do controle acionário das empresas públicas e sociedades de economia mista exige autorização do Poder Legislativo e também licitação. A exigência, entretanto, não se a aplica à alienação das subsidiárias e controladas. Neste caso, a operação pode ser feita sem licitação, respeitados os princípios da Administração. De acordo com o governo federal, as privatizações poderiam gerar mais de R$ 80 bilhões de caixa.

No país existem mais de 130 estatais, das quais 88 são subsidiárias. No julgamento, Marco Aurélio foi a favor de dispensar lei específica para venda de subsidiárias, mas com necessidade de licitação. Celso de Mello, e Dias Toffoli, votaram por exigir autorização legislativa para as privatizações tanto das empresas-mãe como das subsidiárias.

Decisão de grande impacto nas contas públicas foi a que reconheceu a inconstitucionalidade do uso da taxa referencial (TR) para atualização nas condenações da Fazenda Pública. Por maioria, nas ADI 5.348, o Plenário Virtual entendeu que o IPCA-E deve ser adotado nos cálculos e revogou o artigo 1º-F da Lei 9.494/1997.

Cármen Lúcia, relatora do caso, acolheu entendimento da PGR, segundo o qual “a adoção do índice oficial de remuneração da caderneta de poupança como critério para correção monetária de dívidas da fazenda pública mostra-se inidônea para o fim a que se destina, de traduzir a inflação do período e refletir a perda do poder aquisitivo da moeda”. A corte ainda vai decidir sobre o índice de correção de dívidas trabalhistas.

Fonte: Revista Consultor Jurídico - Por Lilian Matsuura