O redirecionamento de RE e REsp previsto nos artigos 1.032 e 1.033 do CPC

10/07/2019

Questão que merece atenção da comunidade jurídica refere-se às situações em que o Superior Tribunal de Justiça identifica uma questão constitucional em um recurso especial posto à sua análise bem como quando o Supremo Tribunal Federal identifica uma questão infraconstitucional em um recurso extraordinário, o que caracteriza ofensa indireta à Constituição Federal.

Por tal razão, dentre as inúmeras inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, as regras previstas nos artigos 1.032 e 1.033 da lei foram vistas com muito bons olhos pela doutrina processualista[1], ao determinarem a remessa do recurso especial pelo STJ ao STF, após emenda para arguição da preliminar de repercussão geral, quando o objeto abordar matéria constitucional, bem como o encaminhamento pelo STF ao STJ, se o recurso extraordinário tratar de ofensa reflexa à Constituição.

Mais que um redirecionamento, trata-se de verdadeiro aproveitamento recursal.

A expectativa sobre as regras decorria da vontade de uma verdadeira mudança de realidade — acompanhada pelos profissionais do Direito — referente a uma automatização da “ofensa reflexa” no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, se a violação à norma constitucional ensejasse o exame do dispositivo infraconstitucional tratador da matéria, a ofensa seria meramente indireta.

Na verdade, a interpretação do que é ofensa direta à Constituição Federal nunca foi tarefa fácil e, a despeito de remansosa jurisprudência na corte suprema sobre os temas que caracterizariam a ofensa indireta — por exemplo, inafastabilidade da prestação jurisdicional, coisa julgada, devido processo legal, contraditório e ampla defesa (artigo 5º, XXXV, XXXVI, LIV e LV, respectivamente) —, há precedentes do STF em que essas mesmas matérias foram julgadas[2].

A dificuldade de definir esse contorno é compreensível, na medida em que "a relação entre normas infraconstitucionais e normas constitucionais não é puramente hierárquica. (...) o conteúdo da norma inferior deve corresponder ao conteúdo da norma superior, assim e ao mesmo tempo em que o conteúdo da norma superior deve exteriorizar-se pelo conteúdo da norma inferior (...) a eficácia, em vez de unidirecional, é recíproca"[3].

Porém, a despeito dessa umbilical e indispensável ligação das normas constitucionais e infraconstitucionais, temos que considerar a existência, em nosso ordenamento jurídico, de uma corte suprema e das cortes superiores, com competência estritamente delimitada. Aliás, a doutrina da ofensa reflexa (mesmo adequadamente aplicada) só faz sentido com essa premissa: a de que há diferença entre tutela da legalidade e tutela constitucional.

Neste raciocínio e considerando que o fundamento da ofensa reflexa é contumaz para a não apreciação do recurso extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal, a oscilação de entendimento sobre o tema gera nítida insegurança ao jurisdicionado, principalmente porque adquiriu o status de jurisprudência defensiva e também porque há uma zona cinzenta sobre o que é — ou não — matéria constitucional que mereça o crivo da corte suprema.

Por outro lado, circunstância que também era (e ainda é) comumente vivida pela comunidade jurídica refere-se ao declínio de competência por parte do Superior Tribunal de Justiça, quando deixa de julgar recurso especial que envolve matéria constitucional e infraconstitucional. Para a corte superior, a análise de matéria constitucional configura usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal.

Com o advento do Código de 2015, a teleologia das normas previstas nos artigos 1.032 e 1.033 é principalmente evitar que os dois tribunais se recusem a julgar os recursos, na hipótese de dupla interposição, ao fundamento de que a matéria não é da sua competência. Além disso, visa nitidamente impedir (i) que os dois tribunais se manifestem sobre a mesma questão jurídica, apenas analisada sob óticas diversas, que teriam dado origem a dois recursos diferentes, e (ii) o risco de decisões conflitantes e o desperdício da atividade judiciária[4].

Diante dessa circunstância e do que se espera com as novas normas, algumas reflexões se mostram necessárias após três anos de vigência do diploma processual.

A primeira diz respeito à forte e contínua repercussão da Súmula 126/STJ, ao enunciar que “é inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”.

Não se está aqui a falar que a Súmula 126/STJ não tem mais aplicabilidade. O enunciado, no nosso pensar, ainda é coerente sistemicamente, após a vigência do Código de Processo Civil de 2015. Todavia, sua incidência merece muita atenção.

Se uma das finalidades dos mencionados dispositivos é prevenir a atividade judicial desnecessária por parte da corte suprema e da corte superior, além do risco de decisões conflitantes no caso de dois recursos sobre o mesmo capítulo da decisão, é de se esperar uma aplicação bastante restritiva da Súmula 126/STJ. Explica-se.

Não podemos negar que sempre haverá um viés constitucional nas decisões judiciais, implícita ou explicitamente. Afinal, como leciona Luís Roberto Barroso, ao discorrer sobre o fenômeno da filtragem constitucional, (...) a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional[5].

Com essa realidade, é inegável que uma maior segurança sobre o que caracteriza ofensa reflexa à Constituição Federal é o pressuposto indispensável para a correta aplicação dos artigos 1.032 e 1.033 do CPC, e, por consequência, para o efetivo alcance dos objetivos das normas.

Essa tarefa, sem dúvida, compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal, já que a definição do que consiste (ou não) ofensa indireta ao texto constitucional é da corte suprema. Vale lembrar que o parágrafo único do artigo 1.032 deixa bem claro que, no caso de remessa do recurso especial ao STF sobre o qual o STJ entender que a abordagem é constitucional (após a emenda recursal para a arguição da repercussão geral), a corte suprema pode devolver os autos.

Com uma interpretação do que é — ou não — ofensa indireta à Carta Magna, não teríamos o vácuo constitucional que os dispositivos querem afastar e, de dois caminhos, um seria inevitável: 1) se a matéria possui, de fato, viés infraconstitucional, o julgamento compete ao Superior Tribunal de Justiça, inobstante a menção a dispositivo constitucional no acórdão, já que, neste caso, a ofensa seria reflexa e dispensaria o exame pelo STF; ou 2) no caso de ofensa direta à Constituição Federal, a competência é inequivocamente do Supremo Tribunal Federal e, caso o recorrente tivesse interposto exclusivamente o recurso especial, seria a hipótese de aplicação da regra prevista no artigo 1.032 do Código de Processo Civil.

Por decorrência lógica, a obrigatoriedade da dupla interposição do recurso especial e do recurso extraordinário sobre o mesmo capítulo decisório — a despeito de os advogados continuarem com a prática, justamente para impedir a incidência da Súmula 126/STJ e/ou 283/STF[6] — é, no nosso sentir, apenas indispensável quando o fundamento constitucional for completamente dissociado do fundamento infraconstitucional sobre a matéria. Se o artigo constitucional servir de fundamento de validade para norma infraconstitucional que regula a matéria, há uma retroalimentação entre as normas que caracteriza a ofensa reflexa.

Ademais, a negativa de seguimento ao recurso especial por incidência da Súmula 126/STJ, quando é patente a vontade do código processual de que o recurso seja aproveitado, pode configurar uma violação ao princípio da primazia da solução do mérito[7].

Na prática, desconsiderar a finalidade dos artigos 1.032 e 1.033 do CPC/2015 é estimular uma prodigalidade recursal que o sistema processual nitidamente quer evitar.

Outro ponto que merece reflexão refere-se ao fato de que, com a pouca ou inadequada aplicabilidade das normas, constatamos, de fato, que matérias idênticas têm sido afetadas no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.

Ilustrativamente, um exemplo atual é a discussão sobre os honorários da Defensoria Pública, que deu ensejo ao reconhecimento da repercussão geral no Supremo Tribunal Federal com o Tema 1.002 (RE 1.140.005, relatoria: ministro Luís Roberto Barroso). Trata-se de recurso extraordinário em que se discute, à luz do artigo 134, parágrafos 2º e 3º, da Constituição da República, se a proibição de recebimento dos honorários advocatícios pela Defensoria Pública, quando represente litigante vencedor em demanda ajuizada contra o ente ao qual é vinculada, viola sua autonomia funcional, administrativa e institucional.

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal havia se posicionado pela ausência de repercussão geral (Tema 134; RE 592.730; relatoria: ministro Menezes Direito), posicionamento que, como visto, foi superado, estando ainda pendente o julgamento meritório da questão constitucional[8].

Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça, no Tema 433 (REsp 1.199.715/RJ; relatoria: ministro Arnaldo Esteves Lima), firmou a tese de que “não são devidos honorários advocatícios à Defensoria Pública quando ela atua contra pessoa jurídica de direito público integrante da mesma Fazenda Pública”[9].

A fim de analisar a continuidade da aplicação da tese ou sua potencial revisão ou distinção, vários recursos especiais foram eleitos como representativos da controvérsia (Controvérsia 56) e são candidatos à afetação no Superior Tribunal de Justiça.

Finalmente, um exemplo de atuação harmônica dos dois tribunais foi o julgamento sobre se os valores pagos a título de Tarifa de Uso do Sistema de Transição (Tust) e de Tarifa de Uso de Sistema de Distribuição (Tusd) integram a base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) incidente sobre energia elétrica.

O tema foi analisado no STF sob número 956 (RE 1.041.816, relatoria: ministro Luiz Edson Fachin), e o tribunal, por maioria, reconheceu a inexistência de repercussão geral da questão, por se tratar de matéria infraconstitucional[10].

No Superior Tribunal de Justiça, a discussão está afetada na sistemática de repetitivos com o Tema 986 (EREsp 1.163.020/RS; REsp 1.699.851/TO; REsp 1.692.023/MT; relatoria: ministro Herman Benjamin) e será apreciado pela 1ª Seção.

Em conclusão, podemos afirmar que a aplicabilidade do artigo 1.033 do CPC pelo Supremo é ainda rara[11], sendo mais perceptível a aplicação do artigo 1.032 do CPC pelo Superior Tribunal de Justiça.

Diante da finalidade dos dispositivos, é muito importante que essa postura seja repensada, do mesmo modo que é necessária uma forte comunicação entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, na busca por atuação coerente e harmônica na tutela constitucional e na tutela da legalidade, o que, sem dúvida, representa a efetiva concretização do dever de cooperação atribuído a todos os sujeitos processuais no artigo 6º do Código de Processo Civil de 2015.

Referências bibliográficas
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______. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.
______. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio>.
______. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br>.
BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3.ed., São Paulo: Atlas, 2017.
CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Jurisprudência e precedentes vinculantes no novo Código de Processo Civil: demandas repetitivas. Revista de Processo, São Paulo, v. 41, n. 255, p.359-372, mai. 2016.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHARDT, Sérgio Cruz. Novo curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015. Vol. 2.
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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015.

[1] A respeito: BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Capítulo 17. Item 9.6, p. 757.
[2] Confira-se o Tema 660 (ARE 748.371; relatoria: ministro Gilmar Mendes), no qual o STF decidiu pela inexistência de repercussão geral.
[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12a ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 140-141.
[4] ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 518.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 387.
[6] Súmula n. 283/STF: É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles.
[7] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
[8] RE 592.730 RG, Relator: Min. MENEZES DIREITO, julgado em 6/11/2008.
[9] A matéria é sumulada no Enunciado 421/STJ: “Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa de direito público à qual pertença”.
[10] RE 1.041.816/RG, Relator(a): Min. EDSON FACHIN.
[11] Da análise de 43 acórdãos do Supremo Tribunal Federal, 2 aplicaram a regra prevista no artigo 1.033 do CPC — ARE 1.094.010 e RE 927.274 AgR. Mencione-se também duas decisões monocráticas proferidas no ARE 1.189.621/SP, em embargos de declaração, pelo presidente da corte, ministro Dias Toffoli, e no RE 985.294/PR, pela então presidente, ministra Cármen Lúcia.

Fonte: Por: Luciana Monduzzi Figueiredo / Consultor Jurídico