A Reclamação para a tutela do precedente também no processo penal

19/07/2017

As tradições civil law e common law sempre se preocuparam com a vinculação ao Direito e com a formação das decisões judiciais. A segurança jurídica torna possível a autodeterminação das pessoas e o desenvolvimento da vida social em mútua confiança[1].

Jeremy Bentham chamou o direito inglês, na época em que os precedentes ainda não tinham força vinculante, mas só eficácia persuasiva, de “dog law” [2], pela inexistência de efetiva segurança jurídica e irretroatividade das decisões judiciais; e fez campanha pela fidelidade ao precedente, com um direito inglês mais acessível, cognoscível e confiável.

O stare decisis, cujo enunciado integral é “stare decisis et non quieta movere”, é uma regra que confere funcionalidade e coerência às decisões judiciais; e que significa “mantenha-se o que foi decidido e não se disturbe a paz”[3], isto é, a vinculação aos precedentes judiciais. A sua fundamentação material está nos princípios da segurança jurídica, da liberdade e da igualdade[4].

O common law não se confunde com o stare decisis[5]. Na tradição common law, a House of Lords, na Inglaterra, somente, em 1898, no caso London Tramways Co. v. London Country Council, decidiu pela vinculação aos seus próprios precedentes (binding precedents); e só, a partir do Practice Statement de 1966, admitiu a possibilidade de superação (overruling), além da distinção de casos concretos (distinguishing), dos seus precedentes, em determinadas situações[6]. O stare decisis é um elemento do moderno common law[7].

No século XX, um debate teórico de caráter transordenamental[8], sobre a teoria da interpretação e aplicação do Direito, provocou uma interpenetração e recíproca influência entre o civil law e o common law.

À guisa de ilustração, com Hans Kelsen (Reine Rechtslere, 1934), com Herbert Hart (The concept of Law, 1961), com Giovanni Tarello (L’Interpretazione dela Legge, 1980) e com Neil MacCormick e Robert Summens (Interpreting Statutes, 1991; Interpreting Precedents, 1997), conforme a pesquisa de Daniel Mitidiero[9] (UFRGS), houve uma mudança sobre a compreensão do Direito, de uma perspectiva declaratória, cognitivista e logicista (prévia determinação do Direito) para uma perspectiva reconstrutivista, adscritivista e lógico-argumentativista (dupla indeterminação do direito: textos equívocos e normas vagas), o que possibilitou a Ciência do Direito avançar para a fundamental distinção entre texto e norma. Os juristas brasileiros Eros Roberto Grau[10] (2002) e Humberto Ávila[11] (2003), por exemplo, já tinham percebido e, pioneiramente, escrito sobre isso no Brasil.

A potencial equivocidade dos textos jurídicos não é possível de ser eliminada com o simples apuramento linguístico na sua redação[12]. Somente o discurso do legislador não é suficiente para guiar o comportamento humano. O sentido e o alcance normativos das fontes dotadas de autoridade jurídica (textos e elementos não textuais) são adscritos, isto é, atribuídos pela interpretação e aplicação, de forma não episódica, a possibilitar a permanente reconstrução do significado do Direito[13].

Os órgãos, constitucionalmente incumbidos da interpretação e adstritos aos enunciados normativos, passaram a ter a função de decidir sobre o melhor significado para os textos jurídicos e, mais, promover a unidade, a estabilidade e o desenvolvimento do Direito (STF, RE 655.265/DF, Pleno, rel. min. Edson Fachin, DJ 13/4/2016).

As razões necessárias e suficientes usadas na justificação de uma decisão sobre uma questão jurídica, pelas Cortes Supremas (no Brasil, o STF e o STJ, conforme o arts. 102 e 105 da CF/88), ganharam força expansiva e eficácia obrigatória, isto é, efeito vinculante, para os Juízes de 1º grau e as Cortes de Justiça.

Essas razões, também conhecidas como ratio decidendi (ou holding), pelo critério funcional (autoridade dos órgãos jurisdicionais que interpretam) somado ao critério qualitativo (razões necessárias e suficientes para a decisão sobre uma questão jurídica), são tidas como determinantes e universalizáveis, e, partir delas, as Cortes Supremas (STF e STJ) elaboram os precedentes judiciais, para a replicabilidade a casos futuros idênticos ou semelhantes (STJ, HC 346.380/SP, 3ª Seção, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJ 13/4/2016).

Com isso, houve uma reconstrução do sistema judiciário[14], no Direito brasileiro, com a distribuição de funções institucionais distintas, entre as Cortes de Justiça (TJs e TRFs exercem o controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira instância e uniformizam a jurisprudência) e as Cortes de Precedentes (STF e STJ exercem a interpretação retrospectiva e dão a unidade ao Direito).

Daniel Mitidiero afirma que todo e qualquer julgamento das Cortes de Precedentes (STF e STJ) deve ser colhido como uma oportunidade para formação de precedentes ou para afirmação da autoridade de precedentes indevidamente violados[15]. E mais, deixar de aplicar um precedente vigente a casos concretos constitui grave infidelidade ao Direito[16].

A Reclamação é mais um instrumento para a tutela do precedente, conforme, em obter dictum, ficou registrado no primoroso voto do saudoso ministro Teori Zavascki, no STF, Plenário, Rcl. 4.335/AC, rel. min. Gilmar Mendes, DJ 21.03.2014.

Não há que se temer o abarrotamento do Judiciário e mais sobrecarga de trabalho no STJ e STF. Muito melhor do que as inúmeras contradições de entendimentos jurídicos, “contrastes jurisprudenciais sincrônicos e diacrônicos”[17], que geram a multiplicação de recursos extraordinários, especiais e ordinários em Habeas Corpus, é preferível a racionalização do Direito, o que contribuirá para, ao longo do tempo, organizar o sistema e otimizar os trabalhos de todos os órgãos judiciais.

Um(a) juiz(a) de 1º grau ou uma Corte de Justiça em 2º grau não são ilhas isoladas, mas são órgãos que compõem um sistema de distribuição de Justiça. As instâncias ordinárias podem fazer o distinguishing, mas não tem legitimidade para realizar o overruling[18], poder só conferido às próprias Cortes de Precedentes, salvo nas situações, muito especiais, de antecipatory overruling, pelas Cortes de Justiça, com o desgaste do precedente ou novas tendências das decisões das Cortes Supremas ou consciência de que as Cortes Supremas estão aguardando um caso apropriado para a revogação do precedente[19].

A paulatina afirmação histórica da regra do stare decisis também na tradição civil law e, especificamente, no Direito brasileiro, conforme já publicaram aqui nesta ConJur, em 25 de maio de 2013, José Levi Mello do Amaral Júnior[20] (USP) e, em 1º de junho de 2013, Sérgio Antônio Ferreira Victor[21] (USP), é demonstrada pela incorporação, ao longo do tempo, de mecanismos que conferem efeito vinculante às decisões judiciais (“sucedâneos do stare decisis”).

O CPC/2015, em seus arts. 489, §§1º e 2º, e, sobretudo, em seus arts. 926 e 927, apenas consolidou essa tendência, que já se afirmava historicamente com interpenetração das tradições civil law e common law (com ponto de confluência na teoria da interpretação), de conferir efeito vinculante aos precedentes judiciais das Cortes Supremas (STJ e STF), no Direito brasileiro.

O novo CPC previu um rol exemplificativo de precedentes normativos (art. 927); previu regras para o stare decisis horizontal (vinculação das Cortes Supremas aos próprios precedentes) e o stare decisis vertical (vinculação aos precedentes das Cortes Supremas); estabeleceu o dever de fundamentação analítica das decisões judiciais (art. 489, §§1º e 2º); e até ousou em adotar, no caput do art. 926, uma proposta específica sobre o conceito de Direito, qual seja, o Direito como “Integridade”, desenvolvida, na obra Law’s Empire, por Ronald Dworkin[22]; e regulamentou mecanismos para a garantia de fidelidade ao precedente, como o distinguishing e o overruling (art. 489, §1º, VI), bem como previu nova regulamentação para a Reclamação (artigos 988 a 993).

Sob a orientação do professor Luigi Ferrajoli, em tese de doutorado, na Università degli Studi Roma Tre, Hermes Zaneti Jr. (UFES) classifica os precedentes normativos em três graus de vinculação: precedentes normativos (materialmente ou argumentativo-racionalmente) vinculantes, precedentes normativos formalmente vinculantes e precedentes normativos formalmente vinculantes fortes[23].

A afirmação histórica da regra do stare decisis no Direito brasileiro já foi reconhecida, em razão da maturidade institucional alcançada e atual estágio científico do Direito brasileiro, pelo Plenário do STF, na Rcl. 4.335/AC, rel. min. Gilmar Mendes, DJ 21/3/2014, e, explicitamente, no RE 655.265/DF, Pleno, rel. min. Edson Fachin, DJ 13/4/2016.

Em grande síntese, tudo isso evidencia algumas conclusões, aqui também estendidas ao Direito Penal e Processo Penal[24], por se tratar de um tema transetorial, na verdade, de interesse de toda a Ciência do Direito:

a) o princípio da legalidade sofre mais uma revolução científica, para ser ressignificado, agora, para o respeito à interpretação dada, aos textos e elementos não textuais jurídicos, pelos órgãos institucionalmente incumbidos[25];

b) o princípio da igualdade sofre mais uma revolução científica, para ser entendido, agora, como todos são iguais perante as decisões judiciais[26].

c) e há uma alteração do referencial da segurança jurídica[27], de modo que não há mais apenas a estática declaração da lei ou dos precedentes, mas a dinâmica reconstrução entre a lei, a doutrina e os precedentes a partir de parâmetros racionais de justificação.

Por essas e outras razões, a regra do stare decisis afirma-se historicamente, ao longo do tempo, no Direito brasileiro e, portanto, para tutela do precedente e fidelidade ao Direito, é adequado o uso da Reclamação, com a pretensão de garantia da autoridade da ratio decidendi (e não só do dispositivo) de uma decisão do STF ou STJ.

Entrementes, no âmbito das Ciências Criminais, dadas as suas especificidades científicas, todas essas novidades da Teoria Geral do Direito e acentuadas no Processo Civil, merecem percucientes estudos acadêmicos e exames pelo STF e STJ.

De forma despretensiosa, conclui-se, por ora, que (i) houve renovação das fontes do Direito Penal; (ii) os precedentes judiciais podem ser aplicados em processos penais, desde que, quando houver novidade in malam partem para o status libertatis dos acusados, ou seja, tratar-se de uma norma de natureza penal ou mista, os efeitos serão modulados pro futuro (art. 3º, CPP, c/c art. 927, §5º, CPC/2015), para evitar violação à dignidade da pessoa humana (art. 1º, caput, III, CF/88) e ao núcleo duro do princípio da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, CF/88), mormente ao direito fundamental à proibição da irretroatividade e da ultra-atividade de norma penal mais severa (art. 5º, XL, CF/88), especialmente pela vedação de surpresa injusta (cognoscibilidade, estabilidade, confiabilidade, calculabilidade e efetividade do, no e pelo Direito[28]); e, por fim, de que (iii) há uma nova compreensão sobre o princípio da legalidade penal, apesar da preferência e respeito ao princípio da reserva de código, conforme o Garantismo Penal (GP) [29].

Fonte: CONJUR